A evolução e disseminação das "novas tecnologias" da internet e da telefonia móvel mudaram a maneira como as pessoas vivenciam suas experiências sociais. A ampliação do círculo de pessoas alcançadas pelas chamadas redes sociais e a instantaneidade com que mensagens de voz e de texto, vídeos e fotos são trocados e replicados nesse ambiente virtual estão no cotidiano de uma parcela considerável da população brasileira.
Apesar de úteis e de facilitar ambientes de troca de informação e debate, as redes sociais e outras áreas da comunicação digital têm sido também um espaço de violências contras as mulheres.
O tema é delicado e exige ações concretas da sociedade e, sobretudo das autoridades para coibir tais práticas nefastas e quem tem sido objeto de reflexão por parte de especialistas.
"Acho que a internet é maravilhosa, nós não conseguiremos, nem queremos refreá-la, mas nós precisamos ser capazes de intervir no espaço da internet. Nós precisamos pensar no espaço virtual como nossas novas ruas e nossas novas casas e pensar no que é necessário fazer para manter as mulheres seguras, em particular as meninas. Isso apresenta novos desafios para todos nós, não apenas nas nossas análises de diferentes "sites" de violência, mas crucialmente em torno de nossa abordagem de prevenção, solução de crises e apoio contínuo."
Marai Larasi, diretora executiva da ONG britânica End Violence Against Women Coalition (Coalizão de Combate à Violência contra Mulheres).
Semelhanças e particularidades em relação às violências fora da internet
As violências de gênero na internet não estão descoladas do "mundo real". Também estão calcadas no desrespeito em relação às decisões das mulheres e em expectativas sobre o que seria um "comportamento feminino adequado", os espaços virtuais reproduzem discriminações construídas socialmente e podem ser componentes para reforçar violências contra as mulheres como a violência sexual, quando, por exemplo, um estupro é gravado e a ameaça de divulgação do conteúdo vira chantagem para que não haja denúncia.
"A internet se tornou outro mecanismo por meio do qual se perpetuam as violências contra as mulheres. Atualmente, temos nomeada a pornografia de vingança, ou o revenge porn, quando um ex-namorado ou alguém que teve acesso a uma foto íntima erótica de uma pessoa a divulga sem consentimento. Há o hackeamento de informações pessoais, por exemplo, no caso do aplicativo de táxi, e há ainda o assédio pela internet, com a difamação online. A cada dia aparece um novo tipo de violência, há uma explosão de categorias."
Beatriz Accioly, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da (FFLCH/USP).
O espaço virtual é ilimitado: a distribuição do conteúdo acontece em efeito cascata e com velocidade, e o alcance que a mensagem com a violência pode atingir é grave, preocupante e, pior, difícil de controlar e ser revertido. Com isso, novas formas de violência contra as mulheres e meninas têm surgido a cada instante no espaço virtual.
"Pornografia de vingança" e "cyberbullying"
No Brasil, entre várias possibilidades de extensão das violências contras as mulheres pela comunicação digital, duas formas têm chamado atenção da opinião pública pelo número crescente de casos que chegam às delegacias e tribunais: a "pornografia de vingança" e o "cyberbullying".
A "cyber vingança" ou "pornografia de vingança" pode ser definida como o compartilhamento de fotos e vídeos íntimos pela internet sem autorização de todos os envolvidos ou com o propósito de causar humilhação da vítima.
Já o cyberbullying é o uso de ferramentas do espaço virtual, como as redes sociais e os celulares, para alastrar comentários depreciativos. Pode atingir qualquer pessoa, mas, geralmente, essa forma de violência mobiliza sistemas discriminatórios, como o sexismo, o preconceito de classe, o racismo e a homofobia.
Nos dois casos, o alcance da mensagem e a cumplicidade de conhecidos e desconhecidos que a repassam adiante intensificam o poder de agressão. No caso de mulheres jovens, a forte inserção do espaço virtual no cotidiano e nas relações sociais torna a mensagem praticamente permanente.
A pesquisa Jovem Digital Brasileiro (Conecta, 2014) mostrou que 96% dos entrevistados com idade entre 15 e 32 anos usam a Internet diariamente e 90% navegam em redes sociais. Quatro aplicativos de comunicação que estão em 80% dos celulares: Facebook, E-mail, WhatsApp e YouTube.
"Quando você sofre um crime de internet, sofre três dores: a da traição da pessoa que você amava, a vergonha da exposição e a dor da punição social. As vítimas deste tipo de crime são responsabilizadas pela maioria das pessoas, enquanto o agressor ainda é poupado pela sociedade machista."
Rose Leonel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet, em depoimento no Fórum Fale sem Medo de 2014.
Espaço virtual, consequências reais
Os profissionais que lidam com esse tipo de crime alertam que suas consequências não são menos graves por conta da violência se propagar em um espaço virtual. Ao contrário, muitas vezes, o alcance e a permanência que as ferramentas online permitem intensificam o trauma das agressões sofridas.
"Quando esse material vai para a internet, a mulher é culpada porque ela tem sua sexualidade revelada – e há um julgamento natural da mulher que manifesta sua sexualidade, por parte da nossa sociedade patriarcal. Muitas mulheres mudam de cidade e até se suicidam".
Marta Rodriguez Machado, pesquisadora e professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.
Em diversos países e também no Brasil os crimes virtuais tem levado algumas vítimas ao suicídio, especialmente as mais jovens. Em novembro de 2013 duas adolescentes, uma de Veranópolis (RS) e outra de Parnaíba (PI), cometeram suicídio após descobrirem que fotos e vídeos íntimos foram compartilhados – chamando atenção para um problema que, por ser "novo", ainda não era devidamente visibilizado.
"O ato de a pessoa colocar a foto da namorada nua na internet, é um determinante para causar o efeito psicológico. E há o que chamamos de "concausas", que são, por exemplo, os fatores preexistentes, simultâneos ou posteriores que afetam o quadro. Então, se há uma menina mais vulnerável, com baixa autoestima, que sofre bullying, ela já é uma pessoa muito mais vulnerável para lidar com aquela exposição. Ou, no caso de a mulher não ter o apoio da família, por exemplo. Isso tudo, mais o fator principal – que é a ação ilícita daquele que fez isso –, vai resultar em um tipo de trauma que pode levá-la a se deprimir, ficar mais ansiosa, não querer o convívio social por um tempo, até o suicídio."
Sonia Rovinski, doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade de Santiago de Compostela e psicóloga forense aposentada.
"É um cenário muito difícil. Há o caso de uma das meninas, ela se enforcou com a chapinha e deixou um bilhete para a mãe falando: "Desculpa se eu não fui a filha perfeita". Aquela menina exerceu sua sexualidade e achou que de alguma forma isso afetaria negativamente a mãe dela. Isso é muito cruel com a sexualidade das mulheres, são regras muito restritivas."
Beatriz Accioly, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP.
UMA REFLEXÃO SOBRE O ASSUNTO
A reflexão passa pelo debate sobre a cultura da violência contra as mulheres e a conscientização das pessoas de que o espaço virtual não é descolado do mundo real e, portanto, as ações tomadas por esse meio têm consequências sérias.
O meio virtual pode facilitar ainda processos de desumanização do outro, mobilizados com frequência para reproduzir sistemas discriminatórios baseados em gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero.
Acesso à Justiça e apoio nos casos de violência na internet
No contexto de forte e amplo julgamento moral, marcante nos crimes de gênero na internet, o apoio é fundamental para superação das agressões sofridas. Os profissionais que atuam com estes crimes destacam que o amparo da justiça e o acolhimento da mulher que é vítima de violência de gênero na internet são essenciais para a sua recuperação.
Direitos e lacunas
Por ser um espaço relativamente novo, o mundo virtual ainda causa controvérsias nos Tribunais brasileiros e, muitas vezes, a responsabilização pelos crimes pode ser comprometida por lacunas jurídicas ou falta de familiaridade dos operadores de Justiça com o tema.
A legislação atual permite o enquadramento do crime de cyber vingança sob a ótica da responsabilidade civil (danos morais) e criminal. Nesta última esfera, além dos crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), as mulheres vítimas adultas, se sofrerem violência psicológica e danos morais, encontram amparo na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), e as menores de idade também são protegidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
O artigo 7º da Lei Maria da Penha tipifica como violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional ou prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da mulher; diminuição, prejuízo ou perturbação ao seu pleno desenvolvimento; que tenha o objetivo de degradá-la ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio.
"Na pornografia de vingança, a honra da vítima é atingida, mas como fica a saúde dela? Muitas mulheres se afastam do trabalho, da família, têm sua saúde mental arrasada. Podemos considerar a questão da lesão corporal, já que as vítimas acabam sofrendo de problemas psíquicos."
Mario Higuchi, promotor de Justiça titular da Coordenadoria de Combate aos Crimes Cibernéticos do Ministério Público de Minas Gerais, durante o Fórum Fale sem Medo 2014.
Cyberbulling
No caso do cyberbulling, se cometido por alguém das relações da vítima, a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada, caso um ex promova os ataques para constranger a vítima para reatar com ele, por exemplo.
Como a violência contra as mulheres acontece em contextos em que outros marcadores sociais da diferença também atuam, outras legislações podem ser aplicadas dependendo do conteúdo das agressões. Se mobilizados discursos racistas, o crime pode ser processado como injúria racial, passível de pena de multa e até três anos de prisão (saiba mais).
A agressão contra mulheres lésbicas, bis e mulheres trans ainda não é tipificada nacionalmente, mas existem leis estaduais de proteção aos direitos das pessoas homossexuais e contra a homofobia, como a Lei 10.948/2001 em São Paulo, e o serviço Disque 100, que recebe denúncias.
Existem ainda diversos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional buscando dar conta juridicamente dos novos desafios colocados pela comunicação digital para o enfrentamento à violência contra as mulheres .